A sessão mais longa desde o início dos trabalhos da CPMI do INSS terminou com Carlos Lupi sob pressão política e técnica. Foram 9 horas e 48 minutos de depoimento, com perguntas de 32 parlamentares, além de quase uma hora e meia dedicada ao relator, o deputado Alfredo Gaspar. O ex-ministro, que comandou a Previdência entre janeiro de 2023 e maio de 2025, negou qualquer participação em fraudes que atingiram aposentados e pensionistas. Repetiu mais de uma vez a mesma linha de defesa: “Não sou denunciado, não sou citado. A Polícia Federal colheu dezenas de depoimentos, e meu nome não aparece”.
Lupi também rebateu a acusação de ter acobertado desvios em pagamentos do INSS e lembrou que deixou o cargo por iniciativa própria, logo após a exposição pública do esquema. O discurso, no entanto, esbarrou no principal ponto levantado por oposicionistas e independentes na comissão: atas do Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) mostram que, em junho de 2023, o então ministro foi alertado sobre o avanço de descontos não autorizados em benefícios. A reação efetiva do ministério, segundo essas atas, só veio dez meses depois.
O alerta do CNPS não surgiu do nada. Beneficiários vinham relatando uma sequência de pequenos débitos no contracheque — seguros, mensalidades de associações, “clubes de benefícios” e serviços que eles afirmam não ter contratado. O padrão se repete: alguém com acesso a dados sensíveis do segurado habilita a cobrança via convênio, a autorização aparece como se fosse válida, e o desconto entra direto no benefício. Para grande parte dos idosos, o valor é baixo por parcela, mas acumulado ao longo dos meses vira um rombo.
Nesse terreno, a CPMI tenta separar o que é falha sistêmica do que é crime organizado. O presidente do colegiado, senador Carlos Viana, foi direto: há convicção de que uma organização criminosa opera no INSS “há muito tempo”. Ele questionou por que dois inquéritos da Polícia Federal foram arquivados e por que, apesar de informações circularem há pelo menos cinco anos, pouco foi feito. O recado para o plenário foi claro: o foco, segundo Viana, é a verdade factual, não a briga política entre os governos Bolsonaro e Lula.
O clima pesou quando Viana destacou contradições no próprio depoimento de Lupi. Segundo o presidente da CPMI, o ex-ministro tratou a primeira delatora, Tonia Galleti, como “amiga pessoal” em fala anterior à Câmara dos Deputados. No colegiado, porém, negou relação. O contraste virou munição para pedidos de nova oitiva e até de mudança de status: Lupi pode deixar de ser apenas testemunha e virar investigado. Por ora, o presidente considera o passo “prematuro”, mas não descarta reconvocação e até acareação com outras pessoas citadas.
As quase dez horas de sessão tiveram momentos de embate pesado e pouca convergência. Parte dos parlamentares usou o microfone para atacar adversários e se promover politicamente. Críticos dentro e fora da comissão reclamaram do desequilíbrio entre discurso e investigação: muitas falas, poucas novidades sobre a trilha do dinheiro, os contratos e os responsáveis pelo avanço dos descontos indevidos.
O coração do caso está em um velho problema da máquina pública: quem habilita, controla e audita os descontos em folha dos beneficiários. O ecossistema tem várias portas de entrada — INSS, Dataprev, bancos, correspondentes, entidades conveniadas — e uma fragilidade óbvia: se os dados do segurado circulam sem trava, alguém em algum ponto consegue cadastrar cobranças sem consentimento real.
O CNPS, que reúne governo, trabalhadores, aposentados e empresas, registra em junho de 2023 a elevação de queixas sobre descontos não autorizados. No papel, isso pede resposta rápida: auditorias, bloqueio de novos convênios suspeitos, revisão de contratos, rastreio de acessos e notificação imediata de órgãos de controle. O que a CPMI quer entender é por que a reação demorou. Houve resistência técnica? Faltou coordenação com a Dataprev? Os bancos e entidades conveniadas foram cobrados a tempo? Sem essas respostas, a narrativa de “não fui citado” não encerra a questão de responsabilidade administrativa.
O presidente Carlos Viana também levantou outro ponto sensível: por que inquéritos que miravam o tema foram arquivados? Arquivamento pode ocorrer por falta de provas, mudança de entendimento jurídico ou erro de escopo. Mas, se depois aparecem sinais de atuação organizada e ampla, a pergunta natural é se peças não foram ignoradas ou se a investigação não cruzou bases de dados essenciais — como registros de consignações, logs de acesso e fluxos entre intermediários.
Embora a cifra total do dano ainda não tenha sido consolidada publicamente, a comissão fala em prejuízo relevante para aposentados e pensionistas. Em casos assim, o impacto vai além do valor descontado: há endividamento em cascata, perda de renda para despesas básicas e alto custo de reversão, já que contestar cobranças exige tempo, informação e acesso a canais de reclamação que nem sempre funcionam.
O passo seguinte da CPMI deve ser técnico e metódico. Parlamentares defendem ouvir dirigentes do INSS e da Dataprev, além de representantes de bancos, correspondentes e entidades que firmaram convênios. A comissão também pode pedir compartilhamento de dados com a PF, o Ministério Público e órgãos de controle interno. Sem juntar contratos, logs, trilhas de auditoria e listas de beneficiários afetados, o mapa do esquema não fecha.
Nesse tabuleiro, alguns pontos seguem sem resposta:
Do lado político, o desconforto é evidente. Governistas tentam isolar o dano como herança que atravessou gestões. A oposição insiste na janela de 2023 para 2025 para cobrar omissões do então ministro. O presidente da CPMI tenta manter o eixo no factual, mas sabe que o jogo é também de percepção pública: se a comissão não entregar nomes, números e correções de rumo, a sensação de impunidade cresce.
Para quem vive o problema na ponta, o que importa é parar o sangramento. A seguir, um guia prático para aposentados e pensionistas que suspeitam de descontos indevidos:
Há ainda uma frente de proteção de dados. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) exige base legal e transparência no uso de informações pessoais. Se um beneficiário nunca autorizou o compartilhamento de seus dados para aquele fim específico, qualquer cobrança vinculada a essa base é contestável. A comissão, se quiser atacar a raiz, terá de mapear como dados sensíveis saíram do perímetro de segurança e como sistemas aceitaram autorizações frágeis ou fabricadas.
O depoimento de Lupi, por si só, não fecha a história. Ele defende que não foi citado em investigações da PF e que não encobriu irregularidades. As atas do CNPS e a demora de dez meses para medidas mais duras apontam outra direção: havia sinais de alerta cedo, e a resposta não acompanhou a gravidade do problema. Entre a palavra do ex-ministro e os documentos, a CPMI terá de escolher a trilha que deixa menos dúvidas — a dos dados, dos contratos e do dinheiro.
Até aqui, a comissão produziu barulho e abriu frentes relevantes, mas ainda precisa entregar a parte mais difícil: a engenharia do esquema, os responsáveis por cada etapa e as correções que impeçam a repetição. A reconvocação de Lupi, a escuta de técnicos e a análise de logs e convênios são peças desse quebra-cabeça. Sem isso, o caso segue no terreno do “disse me disse”, enquanto o desconto aparece, todo mês, no extrato de quem menos pode pagar por ele.